sábado, 27 de agosto de 2011

Atlas e o aquário

Compartilho com vocês um poema que escrevi em 1992, sobre a tristeza do meu pai diante do falecimento da minha mãe.



Havia a marionete em meio à renda na janela
E o aquário sob o peitoril,
Na mesa carcomida por carunchos.

Nunca soube ao certo quantos peixes eram,
E, entre eles, a solidão de um cavalo-marinho, sobre o qual, talvez,
Meu pai estendesse demorado olhar,
Num tempo hoje perdido.

Havia em meu rosto a cor das framboesas.
Nos olhos, boiavam estas jabuticabas
(que hoje, tanto tempo já passado,
Persistem na maturação perpétua,
Carcomidas pelo apetite das visões
De tantos dias).

Era furtivo meu caminhar por entre um quarto e outro,
Como furtivo era o olhar às curvas costas do meu pai
E à contemplação diária a que se expunha, frente ao aquário.

Por vezes, creio tê-lo visto trocar olhares com um peixe,
E recolhida à sagacidade dos meus poucos anos,
Pressentia no silêncio o peso incontestável
Das confissões não ditas.

E tantas foram as confissões restritas ao olhar aguado de um peixe,
E tão poucas as palavras a passar por mim como enxurrada,
Que solidária a mim, por ver-me órfã de um pai vivo,
E solidária a este pai, por não deixar de amá-lo,
Tentei fazer-me cúmplice daquele mesmo peixe,
Embora seu olhar jamais me tenha definido
(talvez resposta sua, ao meu desejo de invasão).

Altivo e duro, o corpo do meu pai
(então humano, diante do aquário)
Parecia descansar de um peso insuportável,
Que talvez lhe fosse a vida.

Atlas a sustentar dores do mundo sobre as costas,
Meu pai me sugeria a sentença de carregar todas as marcas
De um passado morto;
De um passado imóvel tanto quanto a solidão de um cavalo-marinho;
De um passado mudo e fixo
Como o olhar daquele peixe enclausurado pelo vidro.

Mortas pelo tempo,
Esbranquiçaram-se aquelas framboesas.
Ainda as jabuticabas em meus olhos, cheios de visões.
Ainda em meus olhos, bóiam suaves as mãos de minha mãe
A agitar a água de um aquário,
A alimentar um peixe...
Quase como um aceno a tão guardadas,
Tão aguadas solidões.


(Fernanda Dannemann)




Minha mãe, eu e papai, em 1970

4 comentários:

  1. Fernanda,eu fiquei observando a foto em tamanho ampliado,e vc quando bebê não parecia com o seu pai,mas agora adulta,o seu rosto tem as mesmas definições do rosto dele. Fica com Deus.

    Monica.

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  2. Oi, Monica... sempre fui a cara dele, desde bem pequena. Obrigada pelo apoio, mais uma vez. Beijão

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  3. Fê, fiquei comovida com o poema tão lindo. Bjs Yvonne.

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  4. Fernanda: Tenho tido muitos motivos para estar escrevendo movido pelo improvável, pelo imponderável mas, se afinal escrevo por um gosto, preciso continuar justamente,... a escrever e, dar um jeito de escrever... escrever... escrever. Vamos continuar a escrever, minha querida amiga.

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