quinta-feira, 29 de maio de 2014

Com a violência colada aos ossos

Justamente agora, nestes dias em que o Rio de Janeiro vem sendo tomado por hordas de arruaceiros que promovem arrastões, montados em suas motocicletas, e roubam carros, dão tiros, queimam ônibus e tocam o terror na cidade, às vésperas da Copa do Mundo, não muito tempo após o evento dos black blocks, que culminou com a morte de um cinegrafista, tive a oportunidade de ver “Heaven” (no Brasil "Em um mundo melhor"), obra-prima que trata da violência sob diversos ângulos, como se fosse um cubo mágico.

A trama começa na Dinamarca, país evoluído... onde, no entanto, existe o preconceito virulento contra estrangeiros. Do norte da Europa a câmera migra para a aridez de um campo de refugiados na África, paupérrima e assolada pela matança, pela doença e pelo estupro.
A história também mostra a violência sob o ângulo do bullying, tão na moda, mas que não é coisa de hoje, convenhamos. A crueldade infantil sempre existiu, principalmente quando semeada dentro de casa, por pais violentos ou frios, e muitas vezes endossada pela escola.
E mais: mostra a violência que brota no coração de um sofredor como um grito de desespero, uma carência, uma tristeza que não sabe como sair ou se expressar. Tem gente que é assim mesmo: não aprendeu a chorar, a dizer que está padecendo, a pedir arrego, ajuda, abraço, remédio, reza, o que quer que seja que possa trazer um alívio qualquer ao sofrimento. E então fica fácil demais para nós, que estamos de fora da situação, olharmos com a cara desconfiada e fazermos mil julgamentos. É mais fácil dizer que Fulano não presta, que é um coisa-ruim. Difícil mesmo é entender que o coisa-ruim está doendo horrores.
E então vem o melhor da história: um homem é agredido fisicamente por outro diante dos filhos e não revida. O homem amarga intimamente a violência, mas se sujeita. Os filhos cobram a vingança e ele vai atrás do agressor e busca a conciliação, mas é novamente agredido verbal e fisicamente. E em vez de partir para o tapa, ele aceita outra vez a agressão, vai embora e explica aos filhos que “violência gera violência”, “que é assim que as guerras começam”, “que aquele homem é um idiota”.
Minha primeira reação foi achar que idiota era ele, um palhaço covarde que também ensinava aos filhos como serem covardes. E ali, sentada na poltrona da sala de exibição, senti desprezo pelo personagem.
O caso é que este homem, mais adiante, curando miseráveis na aridez da África, em condições práticas e emocionais que beiram o surreal, é capaz de enfrentar de peito aberto um chefe miliciano perigosíssimo, para defender os inocentes do acampamento. E o faz sem armas, apenas usando as palavras, exatamente como fez com seu agressor lá na Dinamarca.
Então entendi que não se tratava de um covarde, mas de um pacifista. Percebi o quanto é fácil rotular como “palhaço”, “fraco”, “frouxo” e todos os sinônimos possíveis, um ser humano CIVILIZADO, que se recusa a agir como um animal irracional que resolve suas questões à base da força, do grito, da lei do mais forte e da ameaça. Entendi o quanto é profunda a questão da ética interior, que é muito mais que um simples discurso, muito bonito de ser pregado, alardeado aos quatro ventos, mas na maioria das vezes dificílimo de ser vivenciado.
E entendi o quanto a violência pode estar arraigada aos nossos ossos, sem que nos demos conta. No escurinho da sala, me escondi de mim mesma, de tanta vergonha.


6 comentários:

  1. A violencia interna de uma pessoa ja pode ser medida pelo uso que ela da a buzina de seu carro quando esta dirigindo

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    1. Sem dúvida: o modo como uma pessoa dirige mostra muito bem seu potencial de violência.

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  2. Querida Fernanda,sua sensibilidade esta cada vez mais unida a inteligência e maturidade.Estamos correndo o risco de perder a negociação social,onde o psiquismo se esconde por trás de todas as atitudes.Somos construídos a base de muitas defesas,mas estamos constantemente nos encontrando com o outro e temos que dar conta disso.O despojamnto e a sinceridade nos deixam mais livres para criarmos saídas .Elas existem!Parabens por todas suas percepções .Grande beijo .Silvana

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    1. Silvana, fiquei felicíssima com o seu comentário. Volte sempre! Beijão!

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  3. Excelente post e merecido o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2011, (quase) sempre beeem melhor , em relevância, do que os americanos ganhadores deste prêmio. Os filmes europeus e/ou dinamarqueses são os meus preferidos.É possível um mundo melhor? Sim e não. Logicamente possível se só fizéssemos concreta e radicalmente ao próximo o que conosco gostaríamos fosse feito. Idem para melhores remédios, casas, escolas, hospitais, boas condições de vida para todos, enfim.

    Não, não é possível um mundo melhor porque algumas coisas não mudam (os clássicos da literatura comprovam que as almas, quase sempre, continuam involuídas rs...até nas tragédias gregas isto se evidencia) , como o caráter humano, suas mentiras, ciúmes, orgulhos, vaidades, sua violência, mesmo que travestida de civilidade, nossas inseguranças, nossa miséria física e mental, nossa hipocrisia. Nossas ambivalências sem cura. (Estes) Valores são incomensuráveis, posto que são da ordem dos afetos, da emoção e quase sempre daquela registrada na infância e como a maioria absoluta envelhece sem amadurecer, as emoções aparecem infantiloidemente. O filme leva à reflexão imediata: o quão pacíficos nós somos? Somos contrários a uma violência idealizada, mas constantes praticantes de uma violência fundamental, uma extravasão de ódio, disfarçada de justiça, cujas consequências prosperam em escalas globais? É isso mesmo?

    Noves fora o Anton, o papel principal (e eu que desde a infância -primeiro por covardia/conhecimento da fragilidade-, que dava um boi pra não entrar em brigas/conflitos e uma boiada para deles sair rs ,e, depois de adulto, por motivos mais filosóficos/espirituais, digamos assim), parece que (quase) ninguém quer ser pacífico. Nos ataques ou violências verbais, se percebo que não corro risco de agressão física, costumo entrar no jogo, sem baixar o nível (não compito para ver quem é o pior, em hipótese alguma), para comprovar-me que sou (quase) invencível.Isto porque quaisquer verdades não incomodam-me ou humilham-me e mentiras ou calúnias, muiiiiiiito menos atingem-me.Pouquíssimos enxergam que o pacifismo radical é esta a única maneira de acabar com a violência e de alcançar a paz mundial . Quem não entendeu isso, não poderia tomar a mesma atitude de Anton: dar a outra face. Ele, talvez, também, por conhecer uma máxima consequência da violência histórica "colonizadora"... a pobreza do continente africano.
    Dos questionamentos levantados pelo filme, como justiça, pacificidade, violência, ódio, compreensão, o quanto de cada um deles nós, meros mortais, os vivenciamos e demonstramos? O quanto somos imunes ou vítimas ou responsáveis por eles? E - talvez - a maior das questões: o quão globais as consequências dessas atitudes podem e efetivamente se tornam? Definitivamente fazer justiça com as próprias mãos, ou competir para ver quem é mais violento (ou pior), só leva à barbárie, cada vez mais.O tal do olho por olho e dente por dente termina com todos (os raros, se houver, sobreviventes da carnificina) cegos e banguelas, no mínimo. Por enquanto (e para sempre?!), a desejada civilidade e a almejada paz não se impuseram. Mas isto não impede que continuemos sonhando e lutando por estes ideiais, pois se existe algo que não morre, é a esperança.

    Estou convicto de que, segundo Morihey Ueshiba (criador do Aikidô), " a força de um homem não está na coragem de atacar, mas na capacidade de resistir aos ataques".Sou mais a rocha que resiste/suporta a violência das fortes ondas que insistem em destruí-la.
    Santé e axé!

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