segunda-feira, 30 de junho de 2014

Uma jovem perdida no tempo e nas águas do Colorado

Eu tinha 28 anos quando minha amiga Alessandra voltou de uma viagem a trabalho aos Estados Unidos e contou que, em seu único dia de folga, precisou escolher entre um passeio no shopping ou no Grand Canyon.

Não pestanejei:

-- Claaaaaaro que você foi ao Grand Canyon!!!!!

Sim. Ela era "das minhas" e tinha feito a escolha certa.

E de pensar que bem mais jovem, lá pelos 18, subi duas vezes a trilha que conduz à Pedra da Gávea... só pra olhar a paisagem lá de cima:

-- Tchau, mãe! Vou subir a Pedra da Gávea hoje. À noitinha eu tô de volta, tá?

Acho que realmente minha mãe levava na brincadeira e só por isso é que me deixava sair de casa. Se eu não suportava programinhas alternativos, do tipo acampar com os amigos, como é que teria ganas pra encarar trilhas no meio do mato e paredões íngremes de pedra? Nem pensar!

-- Vai com Deus, minha filha. Não chega tarde não...

A juventude é a grande hora das pirações, alucinações, rebeldias e maluquices. Foi na juventude, por exemplo, que me aventurei a viajar de carona ou a ir trabalhar com uma blusa decotada e dizer ao chefe que não olhasse o meu decote. (Só porque botei um decote o sem-vergonha do chefe tinha que olhar onde não deveria?!).

Olha, foi nesta época que perdi meu tempo com gente que não valia a pena e sofri por causas sem valor verdadeiro. Foi quando, aos solavancos, fui aprendendo o valor da solidão: ainda bem, porque o preço que a vida cobra por uma má-companhia é impagável quando cai a luz sobre a consciência.

E foi na juventude também que tentei, sem sucesso, domar as ondas do meu cabelo, até que finalmente me dei conta de que cabelo ondulado é um barato total: e tornei-me livre, eu e meu cabelão, isso é que é amor. O cabelo foi só um pálido começo pra eu me aceitar inteira, dos ossos ao espírito, passando pelo (mau) humor e pelos defeitos (de fábrica). Se eu não me aceito... todas os bailes me barrarão!

Você pode estar lendo tudo isso e estar pensando que pirei na batatinha, que tomei um pileque, que fumei alguma coisa natural ou tomei algum chá esquisito... mas não é nada disso não. É só devaneio, a cabeça voadora viajando por aí e jogando conversa fora nesta cozinha virtual, tomando café com bolo, eu e você.

Fecho nosso papo dizendo que a maturidade tem isso de bom: não quero mais ir ao Grand Canyon, tá bom? Passou a vontade. Aquele passeio de barco pelo rio Colorado ficou para a próxima vida, quando eu for jovem de novo. Se for lá praquelas bandas, irei ao shopping.

Moral da história: o tempo passa e os desejos mudam. Se tiver vontade de fazer alguma coisa, faça logo. Ou seu desejo se perderá no tempo, assim como aquele jovem aventureiro (ou meio doido) que você foi.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

De volta ao inconsciente, com Munch




Ainda sob o impacto do inconsciente, fui atrás de Eduard Munch, um cara que se você não conhece pelo nome, certamente há de conhecer por este quadro aqui, ó, um ícone dos nossos tempos...



Munch foi, antes de mais nada, um sobrevivente. E assim como Van Gogh, que o precedeu e o inspirou, ele também cruzava aquela tal porta que conduz ao inconsciente para curar, através da arte, as chagas internas provocadas pelos traumas, pelas catástrofes íntimas, pelas neuroses dolorosas, pelas perdas de morte vividas na infância, pelas doenças mentais no sangue da família.

Mais tarde, alcóolatra, teve agravada a tendência ao isolamento, e nos pincéis encontrou a conexão com o mundo externo: um mundo ameaçador e obscuro, um mundo triste e opressor, um universo violento e em brasa.

Munch Museum  - Valuable works

Munch Museum  - Unique works


Munch Museum  - Interior exhibitions

Puberty by Edvard Munch

Munch Museum  - Unique works
 

Já na maturidade, Munch se refez: libertou-se da bebida e cauterizou sua neurose em um sanatório. Teve a dádiva de encontrar a paz que precisava.

Se parte da força de sua arte ficou lá atrás, com a doença, como dizem os críticos, para mim isso não tem importância nenhuma: Munch já havia provado sua potência como artista e não carecia provar nada a ninguém mais!

Sua maior obra-prima foi ter escolhido a vida enquanto ainda tinha tempo para vivê-la: morreu consagrado aos 80 anos.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Inocência

De vez em quando sinto que me sai do peito
uma menina que não viu a vida
(ou se esqueceu da morte,
todas estas dores)
desconhece a perda e só enxerga as cores
que a natureza lhe botou nos olhos.
Às vezes ela vem com cinco anos,
com dezessete, vinte, trinta e poucos;
brinca de pique, usa batom, solta um gemido rouco,
nem sabe que a vida é este mar de escolhos.
Ai, esta menina que se esconde em mim...
E que ressurge, viva, e tem nas mãos um ovo...
É de felicidade, a gema que ela guarda ali!
Eu penso nisso e rio: gozo de novo...

(Fernanda Dannemann)


quinta-feira, 19 de junho de 2014

De volta ao inconsciente, com Van Gogh

Dias atrás estive no Museu do Inconsciente, no Rio, e me lembrei de Van Gogh. Eis que o destino me trouxe aos olhos (mais um) documentário sobre ele, que pintou mais de 400 quadros sob o desprezo total de sua época: Van Gogh foi um, entre tantos outros exemplos de homens geniais que, justamente por isto, foram incompreendidos pela ignorância do seu tempo.

Afora a isso, portador de doença mental ou "anormalidade", ele acessava o inconsciente através de uma porta misteriosa que o levava a lugares luminosos, dotados de cores muito vivas e espessuras bem particulares: era o mundo de Van Gogh, que o resto do mundo rejeitou.

Veja o trecho de uma carta que ele escreveu ao irmão e confidente Theo:

"O que sou eu, aos olhos das outras pessoas? Um nada? Um excêntrico? Uma pessoa desagradável? Alguém que não tem lugar na sociedade ou jamais terá.
Em resumo, o mais baixo de todos.
Tudo bem então. Mesmo que isso seja totalmente verdade, um dia eu gostaria de mostrar, com meu trabalho, o que um nada, o que um ninguém, tem em seu coração".









van gogh starry night variation



 

File:VanGogh-starry night ballance1.jpg

sábado, 14 de junho de 2014

Frei Betto e a alteridade


"O que é alteridade? É ser capaz de apreender o outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença. Quanto menos alteridade existe nas relações pessoais e sociais, mais conflitos ocorrem.

A nossa tendência é colonizar o outro, ou partir do princípio de que eu sei e ensino para ele. Ele não sabe. Eu sei melhor e sei mais do que ele. Toda a estrutura do ensino no Brasil, criticada pelo professor Paulo Freire, é fundada nessa concepção. O professor ensina e o aluno aprende. É evidente que nós sabemos algumas coisas e, aqueles que não foram à escola, sabem outras tantas, e graças a essa complementação vivemos em sociedade. Como disse um operário num curso de educação popular: "Sei que, como todo mundo, não sei muitas coisas".

Numa sociedade como a brasileira em que o apartheid é tão arraigado, predomina a concepção de que aqueles que fazem serviço braçal não sabem. No entanto, nós que fomos formados como anjos barrocos da Bahia e de Minas, que só têm cabeça e não têm corpo, não sabemos o que fazer das mãos. Passamos anos na escola, saímos com Ph.D., porém não sabemos cozinhar, costurar, trocar uma tomada ou um interruptor, identificar o defeito do automóvel... e nos consideramos eruditos. E o que é pior, não temos equilíbrio emocional para lidar com as relações de alteridade.

Daí por que, agora, substituíram o Q.I. para o Q.E., o Quociente Intelectual para o Quociente Emocional. Por quê? Porque as empresas estão constatando que há, entre seus altos funcionários, uns meninões infantilizados, que não conseguem lidar com o conflito, discutir com o colega de trabalho, receber uma advertência do chefe e, muito menos, fazer uma crítica ao chefe.

Bem, nem precisamos falar de empresa. Basta conferir na relação entre casais. Haja reações infantis...

Quem dera fosse levada à prática a idéia de, pelo menos a cada três meses, um setor da empresa fazer uma avaliação, dentro da metodologia de crítica e autocrítica. E que ninguém ficasse isento dessa avaliação. Como Jesus um dia fez, ao reunir um grupo dos doze e perguntar: "O que o povo pensa de mim?" E depois acrescentou: "E o que vocês pensam de mim?"

Quem, na cultura ocidental, melhor enfatizou a radical dignidade de cada ser humano, inclusive a sacralidade, foi Jesus. O sujeito pode ser paralítico, cego, imbecil, inútil, pecador, mas ele é templo vivo de Deus, é imagem e semelhança de Deus. Isso é uma herança da tradição hebraica. Todo ser humano, dentro da perspectiva judaica ou cristã, é dotado de dignidade pelo simples fato de ser vivo. Não só o ser humano, todo o Universo. Paulo, na Epístola aos Romanos, assinala: "Toda a Criação geme em dores de parto por sua redenção".

Dentro desse quadro, o desafio que se coloca para nós é como transformar essas cinco instituições pilares da sociedade em que vivemos: família, escola, Estado (o espaço do poder público, da administração pública), Igreja (os espaços religiosos) e trabalho. Como torná-los comunidades de resgate da cidadania e de exercício da alteridade democrática? O desafio é transformar essas instituições naquilo que elas deveriam ser sempre: comunidades. E comunidades de alteridade.

Aqui entra a perspectiva da generosidade. Só existe generosidade na medida em que percebo o outro como outro e a diferença do outro em relação a mim. Então sou capaz de entrar em relação com ele pela única via possível – porque, se tirar essa via, caio no colonialismo, vou querer ser como ele ou que ele seja como sou - a via do amor, se quisermos usar uma expressão evangélica; a via do respeito, se quisermos usar uma expressão ética; a via do reconhecimento dos seus direitos, se quisermos usar uma expressão jurídica; a via do resgate do realce da sua dignidade como ser humano, se quisermos usar uma expressão moral. Ou seja, isso supõe a via mais curta da comunicação humana, que é o diálogo e a capacidade de entender o outro a partir da sua experiência de vida e da sua interioridade."

Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto - autobiografia escolar" (Ática), entre outros livros.
 
 
 

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Marcelo e o gol contra


O gol contra do Marcelo, craque titular do Real Madrid, no jogo de estreia nesta Copa que o Brasil está jogando em casa, me fez pensar em Barbosa, o goleiro que levou a culpa pelo segundo gol da derrota por 2 a 1 na final de 1950, também em casa, contra o Uruguai.

No fim da vida, em várias entrevistas, Barbosa costumava dar a seguinte declaração:

"O crime no Brasil prescreve em 20 anos. Mas o meu crime nunca prescreveu".

Morreu alcóolatra.


segunda-feira, 2 de junho de 2014

Tempo de nada


O que quer que tenha eu vivido
Ficou em mim como chuva mal caída.
Assim é que me sinto:
arada e mal,
quase doída;
porque estou morna,
e este descanso todo
me cansa ainda mais.

(Fernanda Dannemann)