terça-feira, 28 de agosto de 2012

O segredo do pajé

Hoje faz um ano que o velho Dannemann pegou aquele bonde com destino a outro mundo. Um ano também que recebi do André, amigo leitor deste blog, um trecho escrito pelo Érico Veríssimo, ao qual tantas vezes recorri durante este tempo.

Entendi o pajé: o velho Dannemann segue vivíssimo no gestual e no rosto expressivo que me deixou como herança; no meu jeito livre de ver o mundo e nesta vontade enorme de viver. Nas veias e na história de cada um dos seus descendentes. Eu o vejo frequentemente em mim mesma, e agora entendo melhor o quanto inquebráveis são os laços de sangue e também os do amor: laços que distância nenhuma (nem mesmo a distância aparente da morte) é capaz de desatar.

O segredo do Pajé

“ Um dia o pajé me chamou à sua oca. Entrei. Fui recebido com esta pergunta:
— Tibicuera, qual é o maior bem da vida ?
— A coragem — respondi, sem esperar um segundo.
— Só a coragem ?
Embatuquei. O pajé ficou sorrindo por detrás da fumaça do cachimbo. Gaguejei :
— A... a...
O feiticeiro me interrompeu :
— O pajé é corajoso, mas de que vale isso ? Seu braço não pode levantar o tacape, seus pés não têm mais força para correr...
— Ah ! — exclamei. — Mas tu és poderoso, sabes de remédios para todas as dores, consegues tudo com as tuas mágicas.
O pajé continuou a sorrir. Sacudiu a cabeça:
— Ilusão — disse. — Pura ilusão.
Depois dum silêncio curto, tornou a falar :
— O maior bem da vida é a mocidade. Um dia Tibicuera ficará velho. Atirado na oca, tecendo redes. Não pode mais ir para a guerra. O jaguar urra no mato e Tibicuera não tem força para manejar o arco. Tibicuera é mais fraco que mulher.
Escancarou a boca desdentada. Eu escondi o rosto nas mãos para não enxergar o fantasma da minha velhice.
— Pajé... Tibicuera não quer ficar velho. Ensina-me um remédio para vencer o tempo, para enganar a morte. Tu que sabes tudo, que viste tudo, que falaste com o grande Sumé...
O pajé continuava a me olhar com os olhos entrefechados. Bateu na testa com o dedo indicador da mão direita.
— O remédio está aqui dentro, Tibicuera. Não há feitiçaria. O pajé gosta de ti. Ele te ensina. Escuta. O tempo passa, mas a gente finge que não vê. A velhice vem, mas a gente luta contra ela, como se ela fosse um guerreiro inimigo. Os homens envelhecem porque querem. Só muito tarde compreendi isso. Tibicuera pode vencer o tempo. Tibicuera pode iludir a morte. O remédio está aqui — tornou a bater na testa. — Está no espírito. Um espírito alegre e são vence o tempo, vence a morte. Tibicuera morre ? Os filhos de Tibicuera continuam. O espírito continua : a coragem de Tibicuera, o nome de Tibicuera, a alma de Tibicuera. O filho é continuação do pai. E teu filho terá outro filho e teu neto também terá descendentes e o teu bisneto será bisavô dum homem que continuará o espírito de Tibicuera e que portanto ainda será Tibicuera. O corpo pode ser outro, mas o espírito é o mesmo. E eu te digo, rapaz, que isso só será possível se entre pai e filho existir uma amizade, um amor tão grande, tão fundo, tão cheio de compreensão, que no fim Tibicuera não sabe se ele e o filho são duas pessoas ou uma só.
Eu olhava para o pajé, mal compreendendo o que ele me ensinava. Quando voltei para minha oca fiquei por longo tempo olhando para meu filho que dormia na rede.
E eu me enxerguei nele, como se a rede fosse um grande espelho ou a superfície de um lago calmo. ”

8 comentários:

  1. Fernanda,

    A uniao entre pais e filhos e muito forte, e o nem mesmo a morte consegue afastar, ao contrario os aproxima mais.

    Concordo com o Paje, quando ele diz que o espirito alegre e sao vence o tempo.

    Agora, como fica aqueles que nao tiveram filhos?

    Um dia eu escutei esta frase: "nao somos seres humanos tendo experiencias espirituais, somos espiritos tendo experiencias humanas" e foi ai que eu disse a mim mesma ....faz sentido.

    Felicidades,

    Gilda Bose

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    1. Gilda, eu realmente acredito que as pessoas que não tiveram filhos continuam vivendo no coração e na memória daqueles que os amaram. Penso em meu tio Sergio, em meu amigo João Muller e em meu professor Orlando: não os esqueço e meus sentimentos por eles não se perderam apesar da morte. O amor verdadeiro vence a morte, ele não se acaba por causa de uma separação física. Tudo o que plantamos no coração das pessoas, de bom e de ruim, cresce e frutifica; sentimentos se transformam, não se perdem jamais. Por isso é tão importante viver bem com todo mundo: nossos gestos e palavras estarão sempre gravados na lembrança de quem passou por nós... neste sentido, estou com o pajé: somos mesmo imortais.

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    2. Também considero "Veríssimo" o texto do grande Érico, queriDannemann.Logicamente o maior bem da vida ..."Está no espírito. Um espírito alegre e são vence o tempo, vence a morte".

      Por isto que muita gente (a maioria, lamentavelmente) quer buscar, em lugares até inimagináveis, e não encontra a tal felicidade, objetivo maior da existência, na minha modesta conceituação.

      A engenhosidade do "TODOPODEROSO" escondeu-a no local mais fácil, porém mais trabalhoso, alcançável somente através do auto-conhecimento profundo, ou seja, ela se encontra dentro de nós mesmos e do nosso jeito peculiarde "serestar". Tanto que ter entusiasmo significa TER DEUS EM SI.

      Dar (mais) valor às pessoas enquanto elas ainda estão ao alcance , e não só depois de "perdidas", deveria ser lei obrigatória.

      As pessoas esquecem o que você disse, esquecem o que você fez, mas nunca esquecem como você as tratou e como você as fez se sentirem. Ato contínuo, não basta ser pai...tem de emocionar positivamente, como o seu (que está , roseanamente, encantado).

      Lembro à estimada diretora do C.P.F.A.S. de que ter filho não garante nada. Não são poucos os pais que têm o desconforto de enterrarem seus filhos, e não só os filhos únicos, e terminam a vida sem eles. O Gibran vaticinou que os filhos não são nossos, são da vida...Bingo!
      Nem todo mundo que tem filho poderia ser chamado de pai e mãe.

      Vou partir para duas citações iluminadas, que alimentam-me espiritualmente, sempre e quando necessário.

      A vida me ensinou que as pessoas são amigáveis​​, se eu sou amável,
      que as pessoas são tristes, se estou triste,
      que todos me querem, se eu os quero,
      que todos são ruins, se eu os odeio,
      que há rostos sorridentes, se eu lhes sorrio,
      que há faces amargas, se eu sou amargo,
      que o mundo está feliz, se eu estou feliz,
      que as pessoas ficam com raiva quando eu estou com raiva,
      que as pessoas são gratas, se eu sou grato.
      A vida é como um espelho: se você sorri para o espelho, ele sorri de volta.
      A atitude que eu tome perante a vida é a mesma que a vida vai tomar perante mim.
      "Quem quer ser amado, ame" Mahatma Gandhi

      .... Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde.
      E por pensarem ansiosamente no futuro esquecem do presente de forma que acabam por não viver nem no presente nem no futuro. E vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem vivido.
      Dalai Lama
      Abraço forte!
      Marcos Lúcio

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    3. Faço minhas as suas palavras, e as do Dalai Lama também!

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  2. Fernanda,

    Acho que esta havendo um mal entendido:

    Quando perguntei sobre aqueles que nao tiveram filhos, foi interpretando o texto do Paje Tibicuera, quando lhe perguntam se Tibicuera morre? e ele responde:"O filho e a continuacao do pai e teu filho tera outro filho .........que continuara o espirito de Tibicuera e que portanto ainda sera Tibicuera", eu entendi o texto ao pe da letra, e nao no sentido figurado.

    Como nao tenho filhos e conheco muita gente que nao teve filhos, eu fiz a pergunta, so isso.

    Conheci tambem casais que perderam seus filhos, por doenca ou por acidente (da qual considero uma tragedia).

    Nao so concordo com as palavras do Gibran, Gandhi e Dalai Lama como procuro por em pratica.

    E o espirito para mim tambem e imortal.

    Felicidades,

    Gilda Bose















    Tambem conheci casais que perderam os filhos (a qual considero uma tragedia)

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  3. Quando vou escovar os dentes, por exemplo, e olho no espelho, vejo o Ariel de sempre. As mudancas sao lentas e dificeis de serem percebidas.
    Faz algumas semanas, estava revendo alguns documentos e encontrei a minha licenca de voo emitida em 1972 e, nela, uma foto de alguem que "nao era eu"!
    Vi a ponte que foi construida em 40 anos e, mais ainda, vi o rio correr durante 40 anos sob essa ponte...
    Se no corpo, na face, vi outra pessoa, na minha cabeca, esses 40 anos nao passaram. Sinto-me exatamente o mesmo. Diria, apenas, que houve um tempo entre aquela foto e hoje. Um tempo que passou sem ser sentido (se bem que notado. Se bem que criando situacoes e recordacoes boas e ruins). Um tempo que se foi.
    Creio que viveremos eternamente a partir das recordacoes. Dos momentos onde, participando, deixamos as nossas marcas, os nossos sinais. coisas que serao lembradas por outros e, enquanto isso ocorrer, seremos "eternos".
    Vejo meus filhos. Tao diferentes e tao parecidos. Nem tanto na fisionomia mas muito nos atos: frutifiquei este mundo!
    Quando crianca, no colegio, lembro que plantei uma arvore. Terminei o meu periodo de estudo, segui a vida e nunca mais voltei la. Nao sei se a arvore vingou ou morreu. Nunca mais a vi mas sei que estive la, naquele momento, plantando algo, deixando a "minha marca".
    Se hoje essa arvore existe e tornou-se frondosa e na sua sonbra pessoas repousam essas nao saberao que fui eu que a plantei mas eu sei, assim como as demais criancas e professores que compartilharam aquele momento, criando algo para a eternidade. Dessa maneira, quase sem percerber, frutificamos este mundo.
    Olho no espelho sem conseguir ver mudancas mas essas "mudancas" ja ocorreram e seguem por meio de atos que praticamos, como a arvore que plantei e larguei la no passado. E enquanto isso for lembrado, serei eternamente aquela crianca!

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  4. Eu a acho que o compositor João Nogueira leu Tibicuera. Se quiserem saber por que, ouçam Espelho e De Volta ao Espelho.

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