quinta-feira, 27 de setembro de 2012

"Trago a Cinderela do Lar em três dias"

E minhas aventuras em busca da empregada doméstica ideal seguem a todo vapor. Ando pensando até em lançar um concurso nacional no Youtube, com direito a vassoura de cristal, para ver se a Cinderela do Lar aparece.

Conto as últimas: dia desses apareceu uma muito bem indicada, tipo forno e fogão, o que para mim não quer dizer nada já que o rango aqui em casa é congelado e as panelas são só enfeite. Gabou-se de trabalhar para o “Seu” Pierre há quatro anos, como se eu lá soubesse quem é o tal, e como se ter patrão francês valesse um MBA em serviços domésticos.  Ia tudo muito bem até o momento em que perguntei se ela tinha mesmo espanado a estante do quarto, onde a poeira reinava, absoluta.
-- Espanei tudinho.
Fui gentil:
-- Tem certeza?
A moça, beirando os dois metros de altura e os 90 quilos, botou a mão na cintura e falou grosso:
-- Por quê, tá duvidando?!
Well, well... meu instinto de sobrevivência gritou bem alto, e me perguntei o que fazer diante daquilo. O primeiro dia de trabalho acabou ali mesmo.
Em nova ocasião, chega uma outra, de salto alto, brincos enormes e douradões pesando nas orelhas e esmalte vermelho nas unhas. E eu que não aparecia na manicure havia sééééculos, por conta dos serviços domésticos... fiquei até com inveja só de olhar pra ela, parada ali na porta com sua Louis Vuitton de Madureira, e vi que não ia dar certo.
Mesmo assim arrisquei, mas a moça falou o dia inteiro na minha cabeça e, pra piorar, recusava-se a fazer as coisas do jeito que eu pedia. Exemplo:
-- Olha, no chão da casa é varrer e passar um pano úmido sem produto nenhum, porque este piso só pede água e fica ótimo.
-- Não, aqui eu vou passar um “Veja”, que é pra ficar limpinho.
(Pergunto ao leitor: aguento isso?!).
Ao fim do dia, quando pedi que lavasse o banheiro, ela me sai com esta:
-- Ô dona Fernanda, se a senhora não vai ficar comigo, por que é que eu tenho que lavar o banheiro?
Eu não sou Sidney Magal, mas o meu sangue ferveu. Abri a porta e apontei o elevador.
-- Porque estou te pagando a diária, meu bem, mas se quiser ir embora, pode ir agorinha mesmo porque realmente não fico com você nem de graça.
Ela saiu porta afora e ainda disse, zombeteira:
-- Fica na paz...
E então eis que me aparece, pela primeira vez em quase um ano, aquela que pensei ser a salvação da lavoura. Ótima, silenciosa, eficiente, ágil e cuidadosa. Ofereci um bom salário e às três da tarde disse que ela podia ir embora.
-- E aí? Gostou? Vai voltar? Estamos acertadas?
-- Não... o serviço aqui é muito pesado. Tem muito livro pra espanar.
Aí foi a vez da Flávia: simpática, doida pra pegar o emprego, dedicada, sorridente. Eu logo vi que estava longe de ser o ideal, mas pensei que quem não tem Juliene vai com Flávia mesmo. Olha, eu me esforcei. Tentei até não me incomodar com o fato de ela tagarelar demais na minha cabeça e me encher o saco, mas foi aí que a porca torceu o rabo: eu estava ali, sentadinha tomando meu café da manhã, quando ela se encostou na pia e reclamou, cheia de intimidade:
-- Aaaaaaai... tô com uma dor na minha hemorróida...
Engasguei, e ela continuou:
-- A senhora tem hemorróida?
Não estou exagerando: foi nesta hora que eu pensei estar tendo uma experiência de “quase-morte”... juro que fiquei gelada e senti meu coração parar e depois pegar no tranco com meu acesso de tosse.
-- Cof, cof, cof, cooooooofffffff...
Bilhete azul para a Flávia.
E então foi a vez da Alessandra... tudo ia otimamente bem naquelas semanas em que, mais uma vez, pensei ter tirado a sorte grande e merecido o milagre de encontrar a agulha no palheiro, digo, a doméstica ideal neste Rio de Janeiro de meu Deus. Mas foi só eu fazer a primeira reclamação sobre uma camisa mal passada e um banheiro mal lavado, que ela começou a chorar. E olha que eu reclamei com a maior educação do mundo! Ela repassou a camisa e lavou de novo o banheiro, mas saiu daqui de casa com uma cara tão amarrada que não precisei ir à cartomante para saber que jamais voltaria.
Por falar em cartomante... lembrei da Juliene... e decidi procurar uma cigana poderosa que possa trazer de volta "a empregada amada em três dias". Será que rola?

Leia também:
O milagre da multiplicação das Julienes

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Dez minutos, e nada mais...

No balcão da loja de tecidos, enquanto escolho a estampa para um vestido novo de verão, o velho conhecido, dono do estabelecimento, se aproxima de repente.

-- Você sabe o que é a vida?
Nooooossa, esta me pegou de chofre...
-- Pergunta muito profunda para uma terça-feira ao meio-dia, e assim de repente, “seu” Nilo.
Ainda tentei arriscar uma resposta satisfatória:
-- Consciência tranquila?
Ele sorriu, com ar de cantor de tango:
-- Dez minutos. Dez minutos e nada mais.
Eu e o vendedor trocamos um olhar cúmplice, daqueles que dizem “ok, entendi...”, e continuamos parados ali, esperando que o homem prosseguisse. (Quem sai com um papo desses tão inesperadamente só pode mesmo é estar precisando, com urgência, falar com alguém).
-- Vou fazer 80 anos dia 11.
-- Vai comemorar?
-- Sozinho.
-- Sozinho como?
Ele tentou “armar” um sorriso de quem está por cima da carne seca, mas certas coisas são impossíveis de disfarçar.
-- Minha namorada me deixou. Disse que estou velho. Me trocou por um jovem.
Fui prática:
-- Não vale a pena chorar por causa dela.
-- Me deixou depois de vinte anos!
Tentei novamente:
-- O senhor dança? É pé-de valsa?
Ele misturou as estações:
-- Eu não estou chorando. Sou bom de bolero. Ela disse que sou o melhor homem que já conheceu na vida, que me adora, mas vai fazer o quê? Se apaixonou por este rapaz...
-- Quantos anos ela tem?
- 66.
-- E o rapaz?
-- 50.
Suspirei.
-- “Seu” Nilo, vamos para a seresta. Deve ter um clube de seresta aqui em Copacabana. Eu vou com o senhor. Olha, não estou te paquerando, sou mulher casada, mas vou com o senhor na primeira vez: aí o senhor faz uns amigos...
Ele me cortou:
-- Amigas.
-- Tá bom, o senhor faz umas amigas, mas aproveita e faz uns amigos também, porque é sempre bom...
Os quatro vendedores prestavam a maior atenção na conversa e um deles, rapaz de vinte e pouquíssimos anos, entrou no papo:
-- Na Rocinha tem! Todo domingo por volta das sete.
Fiquei animada:
-- V´ambora pra Rocinha, "seu" Nilo, agora tá pacificada!
Olhei o rapaz:
-- Toca bolero?
-- Ah, é seresta, toca funk!
"Seu" Nilo não deu atenção, em vez disso tocou de leve a minha mão:
-- Você é casada, não é?
-- Sou.
-- Mas eu vou mesmo assim te convidar para um almoço no melhor restaurante do Rio: comida maravilhosa! Tem tudo! Tem peixe, tem carnes, tem massas... fica ali na Siqueira Campos.
-- Não, “seu” Nilo, nós vamos na seresta. Aí o senhor arranja uma namorada nova e leva pra almoçar na Siqueira Campos...
-- E pensar que eu gostei tanto daquela mulher... comprei um conjunto de safiras pra ela. Tá lá em casa, não cheguei a dar. Vou dar pra você.
-- Prefiro um corte de linho, que aliás o senhor está vendendo muito caro, viu, “seu” Nilo? Tem que dar um jeito de baixar este preço porque assim não dá! Por falar nisso, me dá um desconto aí porque eu vivo aqui nesta loja...
-- Não posso te dar o conjunto de safiras?
-- “Seu” Nilo, para com esse papo de safiras porque vai fazer fila aí na porta, de gente querendo bancar a Cinderela pro senhor...
Eu já estava na soleira da loja, dando tchauzinho e prometendo encontrar um salão de baile da Terceira Idade quando ele deu o golpe fatal:
-- Posso dizer uma coisa? Você é muito bonita! Mulherão!
Lembrei da minha tia Leleia e do “seu” Frota, o vendedor de tecidos amigo da família... e depois pensei que o tempo passa, mas a nossa natureza permanece intocada pelo peso da idade: os 80 anos não são nada para o verdadeiro sedutor.
Já do lado de fora da loja, eu sorri para ele:
-- O senhor está me cantando, “seu” Nilo?
E já estava longe quando o ouvi responder:
-- Dez minutos, minha querida! A vida é dez minutos e nada mais...

 

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Clark Kent ou Superman: você decide!

A gente pode ser o que quiser, mas se esquece deste poder de decisão.

A gente é cientista, astronauta, bombeiro, Messi ou Ronaldinho, herói de filme, médico, piloto de Fórmula 1... professor, pai ou mãe, policial e até bandido, pra variar.
Então um dia a gente cresce. E esquece que pode ser quem quiser: Clark Kent ou Superman? Se temos os dois dentro de nós, basta-nos escolher!
Mas aí a gente vira massa de manobra: vira o que a novela ensina, o que o marketing ordena, o que a mídia quer, o que o patrão manda, o que o sexo oposto espera, o que a religião dita, o que as nossas próprias neuroses fazem da gente... parece que o mundo nos empurra o Clark Kent goela abaixo, e o Superman vai ficando cada vez mais difícil de acessar. E então nos perdemos...
-- Não sei mais o que fazer...

-- Conheço um psicanalista ótimo, talvez possa ajudar.

-- Nããããão, não tem jeito. Eu sou assim e pronto; quem quiser que goste de mim como eu sou...
Tá vendo? Alguns chegam a dizer besteiras como estas (como se aquele que não virar fã vá mesmo perder grande coisa, e o pretensioso que profere tais palavras não tenha nada a perder neste jogo de vaidade e preguiça).  Se ele é “assim” ou ‘assado” isso quer dizer que está cristalizado... virou um caso sem solução: pior pra quem tem que conviver com ele, então!
Caso mais duro que este, só mesmo o de apequenar a existência ao construir em torno de si um cercadinho invisível; uma fronteira entre a vida possível e a impossível: do lado de lá está tudo aquilo que tornou-se “sonho” e veleidade... como se a vida não pudesse ter lances inesperados, incríveis, mágicos, inimagináveis, e fosse apenas o dia a dia puro e concreto de um horizonte só até onde a vista alcança.  Nosso personagem virou um frustrado com síndrome de pobre coitado, mas em geral ele finge que sofre com boa-vontade todas as negativas que a vida lhe impõe. (É bom ter cuidado com gente assim, que costuma ser invejosa).
Há caminhos ainda mais doentios, como atribuir a alguém a responsabilidade pelos próprios desacertos. Então tudo o que poderia ter acontecido vira amargor em forma de saliva: “hoje estou nesta situação e a culpa é do Fulano, que não me estimulou, não me deixou fazer diferente, não me apoiou etc, etc, etc...”. E onde é que você estava, ô Cara-Pálida, que deixou o Fulano ter toda esta influência nefasta? O que é que você estava fazendo, que abdicou do seu poder sobre si mesmo e foi parar aí no fundo do poço?
-- Você canta tão bem... por que guardou a voz na gaveta e se esqueceu dela?
-- Porque Deus quis assim: não tive oportunidades...
Parece inacreditável, mas até Deus entra na dança e pode levar a culpa... a tal que poderia cantar num disco, num palco ou num coral de igreja, que fosse, jamais levantou um dedo para fazer alguma coisa com a voz que a Natureza lhe deu, e mesmo assim prefere acreditar que a escolha de não cantar foi feita lá no céu...

Salvo quem nasce escravizado por uma cultura onde a única liberdade é acreditar-se livre; salvo quem nasce um regiões inóspitas "de tudo" como em alguns lugares do planeta... salvo quem padece na mão de algozes como de vez em quando a gente a vê na TV, que mostra histórias de pais que acorrentam filhos dentro de casa... salvo tudo isso, podemos ser muitas coisas na vida, podemos mudar de papel e recomeçar a qualquer momento: dá pra ser feliz interpretando um personagem só a vida INTEIRA? Não cansa? Não enjoa? Não causa tédio? Não enlouquece ser igual durante 80 ou 30 anos?
Desconfio das vítimas das circunstâncias e acredito que todos estamos no exato lugar onde nos colocamos, vestindo a fantasia que costuramos sobre a pele, interpretando o papel que escrevemos para nós mesmos. E o roteiro só muda se a gente escrever um novo. Se a gente lembrar que pode ser quem quiser: o que vive ou o que vê a vida passar; o que se expande ou o que se encolhe; o que experimenta ou o que fica na vontade; o que se aventura ou o que lamenta; o que enfrenta o medo ou o que teme; o que é feliz agindo, improvisando e atuando... ou o que se dá por satisfeito com o papel de espectador, sentadinho ali na plateia: e aí, todo cuidado é pouco pra não levar vaia de si próprio quando a novela acabar.
 

                                          Estes aí já escolheram! Ao menos por enquanto.

sábado, 22 de setembro de 2012

"Apareceu aqui um senhor de terno azul, querendo ir ao banheiro?"

Estava eu de pé frente ao balcão da casa de massas, traçando uma lasanha às pressas, quando senti que alguém se aproximava. Chegou pertinho de mim e perguntou com a voz cansada:

-- Como faço pra ir ao banheiro aqui?
Instintivamente me encolhi para o lado oposto e respondi incomodada:

-- Aqui não tem banheiro não.

(Fiquei satisfeita por poder me livrar rapidamente dele e comer minha lasanha em paz, mas o homem voltou à carga):
-- Não tem banheiro?!

Olhei para ele, meio de soslaio. Era um senhor por volta dos 75, usando um terno azul- marinho surrado, sapatos marrons e segurando uma velha mala estilo 007. Tentei de novo: 

-- Ali na padaria da esquina tem.
-- Aqui ao lado?
Ele foi saindo antes que eu pudesse dizer que não, não era ao lado, era mais à frente, lá na esquina. Deixei a lasanha no balcão por uns segundos e fui até a porta para vê-lo melhor: caminhava de um jeito meio incerto pela calçada.
Voltei ao almoço mas o prazer já tinha se mandado. “Deve estar com fome... por que não ofereci uma lasanha pra ele? Um copo de coca-cola?, tá um calor de rachar!”.  Comi rapidinho o resto que estava no prato e corri pra padaria; na verdade uma “boulangerie” metidinha a besta, daquelas sofisticadas que agora se espalham pelo Rio.
-- Apareceu aí um senhor de terno azul pedindo pra ir ao banheiro?
O garçon não sabia dele, nem a moça do caixa. Ainda procurei pelas imediações, mas o homem tinha desaparecido; fiquei ali, no meio da rua, tentando saber o que fazer com a sensação ruim que subitamente tinha invadido o meu dia.
A gente é assim: se encolhe quando um desconhecido se aproxima, e principalmente se ele parecer necessitado de alguma coisa, seja uma informação, um copo d´água, uma moeda pra inteirar a passagem. O individualismo característico da sociedade urbana e capitalista já deixou de ser um sintoma cultural para tornar-se genético e fazer de nós animais concentrados unicamente na própria satisfação... como se disso dependesse a nossa existência inteira.
E o pior é que a gente considera isso normal, e até necessário: não dá pra viver dando informação o tempo todo, nem pagando almoço , copo d´água ou passagem de ônibus pra todo necessitado que aparece... sem falar nos golpistas que vivem da ajuda alheia... “eu é que não vou dar mole pra Kojak!”.
Mas olha, também não dá pra viver de olho só na nossa vidinha, sabe como é? Não tem como a gente se concentrar unicamente na lasanha que está comendo, e o resto que se dane porque a vida é assim mesmo. Isso nos desconecta do mundo, dos outros seres humanos, da vida em seu sentido amplo de “coletividade”. Isso nos afasta até do significado da palavra "humano".
A gente corre atrás de grana, de status, de uma aparência legal, de conhecimento, de “poder”... “poder” bancar uma vidinha legal, “poder” ostentar o sucesso profissional que conquistou, “poder” acreditar que deu certo na vida, "poder" ser sexy e atraente... e deixa de olhar para o lado porque, se olhar, aquele homem de terno azul vai estar ali, estragando o prazer do nosso almoço ao perguntar onde é o banheiro e mostrando, em seu aparente cansaço, que está com fome sim, que seus sapatos são velhos, seus cabelos estão brancos, seu rosto está sem esperança... e a gente, bem diante dele, não está nem aí!
O que realmente estragou meu almoço e o meu dia não foi o desalento daquele homem, e sim eu mesma, e esta constatação foi o pior: nossa porção "humana" é infinitamente menor que o animal selvagem que nos habita... e talvez seja entre estas duas forças a grande batalha individual de todos nós.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Macho man e as mulheres que são todas iguais

Pátio do Detran, 9 da manhã de sábado. Aguardo minha vez na fila e, pra matar o tempo e uma certa ansiedade, trato de repassar tudo: seta, lanterna, farol baixo, farol alto, freio e tudo o mais. Não quero repetir o vexame do ano passado, quando o fiscal me pediu pra pisar no freio e eu só me lembro do vrrrrruuuuuummmmmm que o carro fez quando troquei as bolas e pisei no acelerador. O pior nesses momentos de barbeiragem, é que sempre tem um macho man por perto, pronto pra dar risada da gente...

Já em casa, uma fera com o meu marido (que me mandou lá pra fazer a vistoria e, consequentemente, era o responsável pela vergonha que passei) fiquei sabendo que, ao menos quando o assunto é carro, "as mulheres são todas iguais". Falou meu macho man domesticado:
-- O fiscal tá acostumado, meu amor... todas se atrapalham com tanto pedal, botão e luzinha...
Este ano levei o sabichão a tiracolo pra assumir a função caso eu ficasse muito nervosa ou atrapalhada na hora. E foi bem quando esperávamos na fila, e eu repassava mentalmente (pela milésima vez) as funções de cada coisa, que ouvimos aquele som familiar:
vvvvvrrrrruuuummmmm!!!!!!!!!!!
-- No freeeeeio... é pra pisar no freio!!!
Ali adiante, o fiscal repetia o pedido com uma paciência nascida a ferro, até que a motorista da vez acertou com o painel do 4X4.
O rapaz do carro na fila ao lado olhou o meu marido e soltou seu veneno:
-- Imagina a dificuldade na hora de botar esta banheira numa vaga...

Os dois se divertiam às custas da coitada. E eu, já me vendo no lugar dela, fui solidária e fiquei quieta, pensando que, quando o assunto é carro, todos os homens também são iguais: uns debochados machistas!

(Aliás, toda vez que tenho dificuldade pra tirar ou botar o carro numa vaga, e o motorista que está atrás é homem e começa a me pressionar com a buzina, saio do carro, faço cara de Penélope Charmosa e entrego as chaves a ele, dizendo: "Estaciona pra mim? Sou uma tremenda barbeira...". A tática sempre funciona: todos os bobões trocam a expressão de deboche pela de Dom Juan imediatamente e vão lá fazer o serviço pesado pra mim... e ainda dizem que não, eu não sou barbeira, a vaga é que é chatinha mesmo). 
Mas, voltando ao Detran e à pobre que penava na vistoria... o fiscal continuava:
-- Farol alto!
Vimos quando ela apertou tudo o que tinha no painel e soltou a frase do desespero:
-- Cadê a porra do farol alto?
O fiscal não dava trégua:
-- Seta! Seeeeeta, minha senhora... e não o limpador de para-brisa!
Foi quando vimos, na fila da direita, outra moça que passava pela mesmíssima situação. Tentava de tudo no painel enquanto o fiscal repetia:
-- Pisca-alerta!!!
E logo depois emendava:
-- Pisca-pisca não! Pisca aleeeeerta...
Minhas mãos suavam, e diante disso me dei conta de que já tinha misturado tudo na cabeça e nem sabia mais a diferença entre lanterna e farol baixo. Foi justamente aí que chegou a minha vez. Tremi nas bases, admito: era chegada a hora do meu vexame no Detran.
-- Ai meu Deus do céu...
Mas como é do meu feitio, tentei manter a fleuma e não recorri ao co-piloto: pensei que se ali, naquela situação, todas as mulheres são atrapalhadas, todos os homens, por sua vez, são uns sádicos idiotas! Este raciocínio mudou tudo, e se você quer saber... já nem morri de vergonha quando o fiscal pediu pra pisar no freio e o carro fez vvvrrrruuuuummmm!!!!!!

 

domingo, 16 de setembro de 2012

O milagre da multiplicação das Julienes

Quanto mais procuro por aí uma substituta para minha ”ex”, a Juliene... mais eu me convenço das similaridades entre um grande amor que foi embora e uma grande empregada doméstica que sumiu no mundo.

Admito: minha casa nunca mais foi a mesma depois que a Juliene me deixou. Por mais que eu me esforçasse, os lençóis não ficavam mais tão passadinhos... nem tudo no seu devido lugar, como antes. Por falar nisso, dia desses precisei encontrar uma chave inglesa na caixa de ferramentas do meu marido e acho que encontrei chaves de todas as nacionalidades, das africanas às canadenses, menos a que veio da Inglaterra. E lembrei da Juliene, que até de ferramentas entendia, e sempre conseguia encontrar tudo nesta casa onde eu, pessoa organizadíssima, vivo mudando as coisas de lugar.
Ai, ai...
Minha primeira atitude, quando me vi sozinha com a casa, as vassouras, o material de limpeza e a bagunça, foi chorar de solidão e impotência. Convenhamos: não tenho medo de faxina, mas ter fazer tudo sozinha ad eternum é desesperador!
Então, num gesto corajoso motivado pelo instinto de sobrevivência, decidi que sim, eu dava conta do recado! "Não tô nem aí pr’aquela ingrata que me deixou...".
Poucas semanas depois, exausta e frustrada, desisti da nota dez em limpeza e organização, só pra conseguir ser mais feliz. Admiti que não, eu não dava conta do recadão da dupla jornada, do um milhão de coisas pra fazer além do universo doméstico e de, além de tudo isso, ainda manter a pose de charmosa e bem-humorada com o meu marido, de modo que o meu casamento resistisse à situação.

E logo eu, que sou meio Burle Marx, cheguei a passar um tempo sem paciência pra ter plantas... e na hora de fazer um macarrão eu pensava na Juliene: era só o meu marido perguntar "quede o manjericão que ficava na varanda?"... e eu comia pensando “eita, molho sem graça... Juliene, aquela desgraçada...  por que é que tinha que me abandonar?!”.

Então a dor do abandono cedeu espaço à revolta: a estante tá empoeirada? Os lençóis estão sem passar? A cozinha já não é mais aquele brinco de outrora? Fazer o quê?
Arranjar outra, é claro! Ninguém é insubstituível, afinal!
Quase um ano depois, confesso: não foi mole! Ou as candidatas não gostavam do desafio, ou era eu mesma que achava um desafio danado ensinar, por exemplo, que bucha e pano de chão de banheiro não se usa na cozinha... e coisas do gênero que, para a maioria do povo, não tem a menor importância. Não tinha jeito... até as que chegavam com toda a boa-vontade do mundo eram reprovadas no "teste do balde": não acertavam na hora de usar os seis baldes de cores diferentes que eu tenho aqui em casa, e cada um com seu uso específico; o rosa é de pano de prato, o verde é de banheiro, o azul é de cozinha, o de flor é de pano das paredes, o roxo é de lavar roupa e o branco é do chão da casa. Qual é a dificuldade?!
A cada uma que passava por aqui, eu suspirava pensando na Juliene e traçando mil comparações... igualzinho a gente faz com os candidatos a namorado que aparecem depois que aquela paixão avassaladora acabou mal, sabe como?
No caso da paixão que deu no pé, a gente pensa “ninguém dança como ele”, ou “só o Fulano sabia me beijar como eu gosto”...

Já a respeito da empregada ideal, que caiu fora, a lembrança é do tipo “ninguém passa uma camisa como ela”, ou “ela limpava tão bem esta geladeira...”.
E fica aquele saudosismo no ar, um saudosismo doloroso e sem remédio, idêntico àquele dos amores condenados: porque mesmo que o ex-namorado sem-vergonha (mas que você adorava) resolva te procurar de novo, você sabe que não vale a pena aceitar... exatamente como ela, a empregada que já te sacaneou pelo menos uma vez e que, se você ceder ao desespero e der chance, vai te sacanear again!
O jeito é seguir em frente: da mesma maneira que a gente não encerra os trabalhos depois de uma desilusão amorosa, e parte pra outra (ou pra outrassss) até acertar de vez com um amor que seja feliz, temos que ir pulando de galho em galho com as pretendentes domésticas que aparecem... e implorar a Jesus Cristo que promova logo o “milagre da multiplicação das Julienes”... porque olha, não vou te enganar: num caso como este, só milagre mesmo!

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É mais fácil encontrar marido que empregada doméstica

Lula e o fim das empregadas domésticas

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Mil caminhos além do planeta Botafogo

Meu amigo Flávio Migliaccio uma vez me contou sobre um mendigo cuja casa eram as ruas de Botafogo, e que morreu logo depois que alguém, só pra ver o que aconteceria, o soltou nas ruas de Copacabana. Parece que o homem não sabia o caminho de volta, não resistiu à mudança e pirou, “caindo em óbito” pouco tempo depois.

Esta história, tão incrível quanto verdadeira, de certa forma é um risco ao qual todos nós estamos expostos: quem aqui não tem medo das mudanças? E quem está livre de não se adaptar?
Sei lá por quê, todas as vezes em que ouvi alguém dizer que “adora desafios”, tive a impressão de que a pessoa se referia mais ao risco e à adrenalina dos esportes radicais do que propriamente aos riscos da mudança implícita a um futuro incerto. Uma coisa é o sujeito se divertir pulando de uma ponte altíssima preso apenas por um elástico na cintura... outra, bem diferente, é ter que encarar  a vida nova que está à espera após a assinatura do divórcio; ou no clima, na língua e nos costumes de outro país; ou no cotidiano de outra profissão; ou no corpo que ficou diferente depois de superar uma doença; ou nos mistérios de um outro amor...
Às mudanças que dependem da decisão, poucos se arriscam. A maioria se conforma com a segurança da zona de conforto, como o mendigo que vivia num planeta chamado Botafogo. Se ele já conhecia tudo direitinho ali, pra quê mudar, meu Deus?!
Aí a multidão vira manada e conclui que é mais fácil viver sem vertigens, fazendo todos os dias o mesmo caminho entre o mesmo emprego e a mesma casa...  assim a paisagem não muda e a vida não tem sobressaltos.
Observo as pessoas felizes, que têm gosto pela vida, e vejo que são todas bem parecidas entre si, tanto quanto as que empurram o tempo com a barriga e varrem as decisões para debaixo da cama... e têm sonhos eróticos com ela todas as noites, sem jamais criar coragem para tirá-la dali...

E percebo que os caminhos também são todos iguais pra todo mundo. O que muda é só o jeito de fazer a caminhada.

(Olha os caras aí embaixo dizendo a mesma coisa, mas cada um do seu jeito bem particular...).








quarta-feira, 12 de setembro de 2012

"É foda... pior é que é!"

Tenho um amigo jornalista, documentarista, ciclista, fotógrafo, blogueiro e torcedor do Fluminense que é também um perspicaz observador da alma humana, e que desenvolveu um método muito pessoal pra conversar com qualquer pessoa, sobre qualquer assunto, a qualquer hora... e o melhor, sem precisar prestar a menor atenção no que o seu interlocutor está dizendo.

O tal método consiste em apenas duas frases que se alternam, e cai como uma luva quando a gente encontra aquela pessoa com quem já conviveu por força das circunstâncias, e que um dia encontra, inesperadamente, no corredor do shopping ou na fila do cinema: um ex-colega de trabalho, um ex-cunhado, um cara muito mala da faculdade, com quem fazíamos os trabalhos de uma matéria chatérrima... ou até um "ex" saído do pretérito amoroso, e de quem as lembranças não são lá grande coisa...
-- Ooooooi!
(Você tenta disfarçar o desprazer com um sorrisinho forçado e saca a velha resposta de sempre):
-- E aí???
O mala também não é criativo:
-- Há quanto tempo...
Então você tira da cartola o método do meu amigo:
-- Pior é que é...
O mala ataca outra vez:
-- O tempo passa mas você não envelhece!
E você insiste no método, que está dando certo:
-- É foda...
Ele:
-- Tá morando lá no mesmo lugar?
Você:
-- Pior é que é!
Ele:
-- Continua casado?
Você:
-- É foda...
Ele:
-- Bom... vamos ver se a gente marca de tomar um chopp pra botar o papo em dia! Anota aí meu telefone e deixa eu pegar o seu! Mas vamos marcar mesmo, senão a gente nunca mais se vê...
-- Pior é que é...
Pode até parecer piada, mas não é. Já o vi pondo em prática sua tática e posso garantir que funciona em qualquer situação: seja em notícia de velório ou de casamento; em discussões políticas ou queixas de separação amorosa; em papo sobre falta de grana ou sobre aumento de salário... não é que sempre dá certo mesmo?! Nem a crise conjugal, a religião ou o futebol ficam de fora:
-- Quero o divórcio!
-- É foda...
-- Nosso casamento acabou...
-- Pior é que é!
Ou:
-- Arrependei-vos, pecadores!!!!
-- É foda...
-- Ou então vão arder no fogo eterno!!!!
-- Pior é que é...
Ou ainda:
-- Vamos ao jogo ver o Fla dar uma surra no Flu?

-- É foda...
-- Te pego às três...

-- Pior é que é!

E então me dirão os leitores:
-- Este teu post tá um saco!
Ao que responderei:
-- É foda...
Serei questionada:
-- Falta de imaginação?
E assumirei:
-- Pior é que é!

domingo, 9 de setembro de 2012

Alguém pode me dizer onde está Wally?

Fui ver a exposição de uma artista famosa e não entendi nada:

 
 

Sabedora de que muitas vezes precisamos de uma explicação para que possamos entender e admirar uma obra artística, busquei ajuda no texto escrito pelo especialista, colocado na abertura da exposição:


Por que será que em exposições de mestres como Modigliani, Rodin, Dali e Monet os especlialistas escrevem fácil, e todo mundo consegue entrar no clima e entender tudinho o que vê? E por que será que no caso de artistas menos populares (ou mais conhecidos no meio intelectual), os textos de apresentação parecem escritos para afastar ainda mais o público comum?

Inspirada no joguinho "Onde está Wally?", lanço a questão:
1- Onde está o problema? Em mim, no mercado de arte, na artista ou no texto escrito pelo entendedor do assunto?

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Um beijo para a imperatriz dona Leopoldina

Passei o dia com a vassoura na mão, a pleno vapor na faxina: Juliene, minha ajudante nos assuntos domésticos, andou com problemas pessoais. Mas o que achei graça foi quando o rapaz que limpa os vidros de casa chegou e, ao me ver de faxineira, questionou, surpreso:

 -- A senhora consegue?!

 Foi tiro e queda: meu pensamento se deteve no “consegue” e acabei divagando sobre os “grandes” desafios da mulher. Para muitas, sei que é preferível pagar o Tom Cruise para a “missão impossível” de limpar a casa ou fazer o almoço.  

 Mas com  a proximidade do 7 de setembro, uma coisa se juntou à outra e me lembrei de uma das minhas maiores heroínas, a Dona Leopoldina, que conseguiu a liberdade do Brasil mas, infelizmente, não foi valorizada dentro de casa. E, tempos depois, caiu no esquecimento do próprio povo que ajudou a emancipar.

 Quase 200 anos a separam de suas iguais de hoje, e vejo que os maiores desafios da mulher pouco mudaram neste meio-tempo: reconhecimento e valorização.

 Temos por “Rainha do Brasil” a dona Carlota Joaquina... a espanhola que odiava este país e que, ao voltar para a Europa, deixou para trás até os sapatos, porque “desta terra não queria nem a poeira”. Para mim, a verdadeira rainha do Brasil foi a Imperatriz Leopoldina, que saiu da Áustria para tornar-se brasileira de coração e fé.

 Como é comum acontecer com esposas de homens importantes, Dona Leopoldina acabou relegada às sombras, ainda que tenha sido ela a verdadeira responsável pela Independência __quando, na condição de regente, assinou o decreto que separava o Brasil de Portugal e, então, avisou ao marido com uma carta.

 Cinco dias depois da tal assinatura, Dom Pedro recebeu sua mensagem, às margens do Ipiranga e, diante disso, fazer o quê? Teve que proclamar.

 Descrita como culta e ótima caçadora, Dona Leopoldina, pertencendo à uma das mais tradicionais dinastias européias, a Casa de Habsburgo, foi preparada para reinar: chegou a surpreender até mesmo o sogro, que, segundo consta, entre uma e outra coxa de galinha reconheceu sua superioridade diante de Dom Pedro. Infelizmente não era feliz no casamento: o marido, assumido mal-educado, tinha um coração aventureiro e preferia um tipo bem diferente de mulher.

 A figura quase mítica de Domitila de Castro __a Marquesa de Santos__ popularizada na novela por Maitê Proença, entrou para a história como “verdadeiro amor de Dom Pedro”, esgarçando ainda mais a imagem de Dona Leopoldina e colocando-a até como “empecilho” pelos mais românticos.

Como me espanta a invisibilidade de nossa Imperatriz! Eu mesma sou uma prova disso: cresci achando Dom Pedro o máximo, com a idéia da gloriosa cena do grito “Independência ou morte!” lançado ao Ipiranga pelo herói nacional... da mesma maneira, muitíssimas pessoas nem desconfiam que, por trás do herói, estava Dona Leopoldina.

Mergulhada na depressão, ela morreu cedo e grávida. A causa de sua morte segue envolta em divergências, mas é bem conhecida a versão de que teria sido causada por uma surra de pontapés dada pelo marido intempestivo justamente por causa da amante, e na presença desta, inclusive. Qualquer que seja a verdade, o fato é que morreu amada pelo povo e humilhada dentro de casa.

Enquanto faço minha faxina, penso em quantas mulheres sofrem este mesmo destino: desvalorização, desrespeito, esquecimento... então me lembro que já amadurecemos a ponto de ter, no Brasil de hoje, mulheres ajudando a fazer leis e leis como a Maria da Penha, que as defendem de homens violentos... mulheres como delegadas e policiais, desembargadoras, chefes de família, cientistas, presidentes de empresas, mulheres até disputando e vencendo a presidência do República. Mulheres que estão aprendendo a consquistar o seu lugar no mundo. De onde estiver, Dona Leopoldina há de se sentir orgulhosa do país que ajudou a construir, ainda que quase ninguém se lembre mais dela.

 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

sábado, 1 de setembro de 2012

Aborto (1992)

Eu era a cruz

denunciando a sepultura.

Eu era a morte

que a cruz avisava.

Eu era a sepultura de mim mesma,

cova escura abrigando um corpo

como se fosse um útero.

(Fernanda Dannemann)